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Responder-me

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  Estou à margem de Deus. Fazendo o trabalho: ver, ouvir, sentir. Quando dou-me conta, a vida vem; em outro espanto, a vida vai. Quisera eu testemunhar tudo em silêncio. Não consigo. É uma maravilha, un espetáculo e no entanto Deus enche-me de fissuras. É a maneira pela qual ele me constitui. Vestido de vazios. Não me queixo. Não poderia dar-me o direito. Quero ao além o bem. O segredo deixa-me na boca a sua suave temperança. Lembro-me de mim com um ar paternal. Se tivesse mais cuidado com aquele menino. E entretanto eis-me aqui. Respondo-me pelo sentido.

Saldo

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Hora feliz... A do silêncio. Com os olhos abertos e, contudo, sem enxergar nada. Não confio nos sentidos. Confio no meu interior. Nele, há Deus. Mas não há como saber. Digo e crio. Digo criando. Conjugando-O e me conjurando. Estou sem informações sobre o mundo e,  entretanto, escrevo. Estou quase entregando tudo. Mas estou aqui. Estou quase no calafrio da piedade. Mas estou aqui.  Estou quase aos pés dele, o meu Senhor, a pedir que me dê outra vida. E estou aqui. Sou certamente um mal-agradecido. Para onde vou com tanta prepotência? Não há meios de me resignar? Vejo o outro com tão pouco e, entretanto, engole-me um monstro, engole-me um desejo. Ele se denomina a própria materialidade. Estou com frio. Eu estou aqui. Não enxergo absolutamente ninguém. Não dirijo mais o meu olhar. Estou perdendo os sentidos. O paladar vai-se embora. Não sinto falta do aroma. E tocar-me tem sido um desafio. Não conheço mais meu corpo. Não quero saber de outra coisa a não ser do meu espírito. Não p...

Fruto

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Caminhando, pensei na alegria de conhecer as palavras de Daniel Faria (1971-1999). Lendo-o, parece mesmo que eu não o conhecia de agora. Que nasci junto com ele. E também que ele, ao morrer, leva-me junto. E eu tinha apenas 7 anos. Ao caminhar, pensei também nas pessoas que abandonam a vida. Se tivesse de abandonar a minha, seria justamente por não suportar mais que o conhecimento não é medida de nosso sucesso, mas a medida de nosso fracasso. Certamente, Deus permitiu que eu chegasse a essa conclusão. Certamente ele grava, com leveza e, às vezes, com brutalidade, essa grande verdade em mim. Nos dias em que me sinto leve diante da vida e do conhecimento, ouso rir, viajar, na mente, pelas facilidades alienadoras do cotidiano. Nos dias em que me sinto grave, há a responsabilidade do mundo. Ela é a minha segunda pele, minha segunda natureza. Deus tudo acompanha. Administra o que nos meus olhos parece-se com a explicação derradeira sobre as coisas da vida. Deus lembra-me: haverá sempre mais...

Distração

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  Mania cabalística. A angústia do conhecimento. Será sempre este o problema... O conhecimento, mas também o mistério de existir. Deus deu-me o dom de pensar à respeito disso. O dom significa aqui o interesse. Sou um homem interessado na arquitetura do mundo e dos que nele existem. René Descartes, com o seu cogito ergo sum , parece que salvou Deus dos entusiasmados esclarecidos. Essa espécie de gente vê o mundo como curiosidade.  Também não me atrai o outro lado. O século XX vulgarizou tudo. Nele, reside uma culpa. Estou, então, como um lenho perdido, como dizem os versos de Luís de Camões. Esta figura já populou o meu pensamento, quando estava escrevendo algo. Algo sincero, algo verdadeiro, porque vazado de intenções. Aos vinte e oito anos escrevi apenas duas obras: a dissertação Caeiro-ângulos-Homero (2019) e o livro de poemas Minotauro (2019). Em ambos, comprei o ticket de viagem. À sério. Com muita dor na mente. Peguei-me nas mãos de Deus, mas também pedi ajuda aos deuses...

Estrada

O último movimento dá o tom. Por ele abre-se a estrada. E ela será aberta com um filete valioso. O amor. Escrevo por amor à humanidade. Caio na armadilha de traçar causas e consequências, condições e resultados. O substantivo "amor" deveria ter alguma complementaridade? Transitividade? Amor à humanidade? Ou dizer "amor" implica, sem expressão normativa, restabelecer, sempre, o objeto do sentimento que cada um pode definir como quer - e eu defino, agora, como a humanidade? Um abismo atrás do outro. Estou à altura de definir algo para o amor? Estou à altura de povoar a escrita com questões a que não terei como responder? A escrita por si só é uma resposta.  E há quem diga que a resolução está na própria forma da pergunta. A ideia até me agrada, porém é perigosa. Se pergunto "quem é você?", nossa língua não amarga. No "quem" há vida. Por força e por jeito gramatical. Mas se pergunto "o que é você?", minha consciência medra e me alerta: não...