Estrada

O último movimento dá o tom. Por ele abre-se a estrada. E ela será aberta com um filete valioso. O amor. Escrevo por amor à humanidade. Caio na armadilha de traçar causas e consequências, condições e resultados. O substantivo "amor" deveria ter alguma complementaridade? Transitividade? Amor à humanidade? Ou dizer "amor" implica, sem expressão normativa, restabelecer, sempre, o objeto do sentimento que cada um pode definir como quer - e eu defino, agora, como a humanidade? Um abismo atrás do outro. Estou à altura de definir algo para o amor? Estou à altura de povoar a escrita com questões a que não terei como responder? A escrita por si só é uma resposta.  E há quem diga que a resolução está na própria forma da pergunta. A ideia até me agrada, porém é perigosa. Se pergunto "quem é você?", nossa língua não amarga. No "quem" há vida. Por força e por jeito gramatical. Mas se pergunto "o que é você?", minha consciência medra e me alerta: não posso reduzir você a um quê, a um exemplar, a um objeto, indeterminando-o ou determinando-o. A tua vida é singular, apesar de tudo, que aí está, prescrever o contrário. O medo é maior se nos questionarmos "o que é Deus?". Posso ser esperto e prontamente dizer: Deus é amor. Então escrevo com Deus voltado para a humanidade. Se sou eu que estou voltado para a humanidade a partir de Deus ou se é Deus quem está voltado para a humanidade a partir de mim, isso talvez não importa tanto. Importa momentaneamente, no instante em que escrevo. Porque esta escrita estará comigo, com Deus, com amor e com humanidade. 

Com a humanidade, ouso enfrentar os valores e ouso também enfrentar os tempos, daqui, do meu lugar, aqui, no meu pensamento. Mas, sem esquematismos temperamentais, estou sujeito a ações mínimas e algum ser que certamente é superior a mim testemunha tantas fraquezas. Por exemplo, como poderia enfrentar a natureza, justamente hoje, quando a chuva cai, sem culpa, na cabeça e nas casas dos homens, impedindo-os de atravessar a cidade - arrisco a dizer, as cidades? Nenhuma pretensão dá conta. A minha foi ingênua. Se tivesse, entretanto, ficado em casa, também me consideraria um covarde. Alguém sem vontade. E a vontade, que houve, impulsionou-se para o atravessar dessa cidade inóspita. Fiquei mais de uma hora no trânsito. Os ônibus talvez se parecessem um pouco com a Arca, carregando os animais, que somos nós. Porém não tenho um pingo de certeza se somos merecedores da renovação. O nosso tempo, porque não o tocamos, já está velho. E eu estou cada vez mais fossilizado, por falar e por praguejar na minha solidão. E Deus, entretanto, não gostaria de que fosse diferente. Se assim quisesse, conceberia-me como outro, mais sedutor em espírito. Não poderia, porém, reclamar uma originalidade diante dos homens. Ser homem é ser original, naquilo que tende a ser mais abstrato, mas também mais corpóreo. O meu corpo, o meu semblante, as minhas rivalidades, a maneira como me deito, não podem jamais ser amaneiradas como se dá com outro homem. E é essa diferença, porém, que nos encanta e que suscita uma certa magia emoldurada como "relacionamento".

Desmistificar o que na vida empenhamo-nos por dobrar? É justo? Diante daquela árvore, com suas folhas a balançar, como se seu dorso cedesse ao beijo tumultuado da ventania, não, não é justo. Não é de hoje que um vendaval se alastra. Não em mim e nem somente em mim. O que pouco interessa. Quando olho para certas brochuras, sei, então, que num lugar onde o tempo não tem vez, onde ele não ganha o jogo, aí sim, não posso estar sozinho. E se fosse cego, talvez sentisse do mesmo jeito a coerção do tempo fora das brochuras. Porque passar é também conhecer. E Deus, se conhece, certamente nos olha, pisca e faz do piscar o intervalo da sua composição. O silêncio é tempo estendido à duração. A ininterrupta linha é tempo estendido à duração. Palavras tropeçando em palavras é o nosso labirinto sem fio de Ariadne. E através dos tempos. E a ideia de Deus não me deixa esquecer da responsabilidade do meu ser. E o meu ser, quer ser tanto que nem saber exatamente o que quer, nem consegue conceber a ideia de todos os quereres. Tempo é também querer.

A gravidade dessa metafísica de botequim não está estampada sistematicamente por aí. Não há sujeito que dê conta dela. Nem eu mesmo. Encontro-a esparsamente, onde os meus olhos declinam, seja numa página cabotina, seja naquela árvore que balança ao sabor da ventania. Caio na armadilha. Fico preso nela. Sua tortura é a escrita, que trota em mim e controla meus dedos. E vou entregando-me a tudo isso, adivinhando que em tudo isso há o mínimo de redenção e uma ideia vaga de Deus. Ninguém haveria de acreditar em mim se dissesse isso de maneira cantada. E, principalmente, porque, toda vez que quis verbalizar, veio-me a gagueira. Vivo numa condição social, no imperativo do presente, na aposta do progresso e do desenvolvimento, que não aceita de modo algum a voz que se deixa travar. Para um orador afinadíssimo, meus lapsos, meus esquecimentos, minhas repetições, cacofonias, anacolutos são da ordem do absurdo. São sintomas do desajuste com as instituições, porque elas esperam que minha performance seja A performance.

Há uma verdade de performance. Deus deve ter intuído isso. Quando a propedêutica se deixa assombrar. Porque se Deus é luz e nós somos a sombra, porque haveremos de concordar com isso? Por que, afinal, se Deus atravessa-me, não poderia ser todo luz, em vez de, simplesmente, por um jogo retórico, ser aquele "iluminado"? Por que nesse vocabulário tão simples cola-se a mim a noção de instrumento? Por que devo ser passagem se a própria conceituação de passagem tende a abandoná-la? Ninguém haverá de lembrar das passagens. Nem do que passou, exceto na galeria das curiosidades. Sou todo contradições. Antes, percebia o quanto Deus, ao passar na minha vida, significava-a. Dava a ela um propósito. Hoje, vejo a sua insignificância. Amanhã serei outro. Não há garantia de significado para mim. Pois se amanhã sempre serei outro e eu percebo essa alteridade, qual é o papel de Deus nisso tudo? Abre-se a estrada? Onde está a estrada? Começa a estrada?

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