Fruto
Caminhando, pensei na alegria de conhecer as palavras de Daniel Faria (1971-1999). Lendo-o, parece mesmo que eu não o conhecia de agora. Que nasci junto com ele. E também que ele, ao morrer, leva-me junto. E eu tinha apenas 7 anos. Ao caminhar, pensei também nas pessoas que abandonam a vida. Se tivesse de abandonar a minha, seria justamente por não suportar mais que o conhecimento não é medida de nosso sucesso, mas a medida de nosso fracasso. Certamente, Deus permitiu que eu chegasse a essa conclusão. Certamente ele grava, com leveza e, às vezes, com brutalidade, essa grande verdade em mim. Nos dias em que me sinto leve diante da vida e do conhecimento, ouso rir, viajar, na mente, pelas facilidades alienadoras do cotidiano. Nos dias em que me sinto grave, há a responsabilidade do mundo. Ela é a minha segunda pele, minha segunda natureza. Deus tudo acompanha. Administra o que nos meus olhos parece-se com a explicação derradeira sobre as coisas da vida. Deus lembra-me: haverá sempre mais um, a eterna novidade. Você, meu fruto, vai provar e ser provado!
Neste quarto, sinto-me um fruto apodrecido. O apodrecimento é ter de reconhecer certas qualidades indesejáveis. Há tanta arrogância no mundo e também em mim mesmo... E a arrogância, como espiga de tantos outros atributos impertinentes, é o que liga-me ao mundo. Deus, neste caso, há de convir que a sua criatura é altamente consciente do seu ser-estar no mundo. Deus jamais poderia evitar que eu tivesse a consciência de tanta maledicência. Tanto é assim que eu a externalizo, por testemunhar e por conceber uma reflexão que vislumbre em algum lugar, em algum momento e em alguma crença a fuga disso. Palavras muito duras e, entretanto, inevitáveis. Apesar, disso, há a alegria e a doçura de quem está para nascer. A vida não fracassou; nós é que fracassamos perante ela.
Enquanto fruto, estou fadado a ser devorado, a ser espremido. A me adequar aos gostos alheios. Quem me saboreia, não quer amargor, nem um homem sem sabor. Entretanto, a experiência da cidade - que pode ser muito bem desta ou de qualquer outra cidade - azedou-me. No campo das relações sociais, difícil é me digerir. Não falo isso com orgulho. Falo isso com o sentimento de uma grande lamentação. Faço das páginas em branco o meu muro. Meus diários, minhas brochuras, esta tela, os meus sonhos (que só tenho-os ao dormir) e as minhas orações são os meus companheiros. Não me abandonam e nem me abandonam. Deus, de quando em vez some. Busco-o em mim de maneira bem baixinha, nessa escuridão concreta e irreal. Dirijo meu olhar aos céus e pergunto-me se à despeito de todas as tentativas de me adoçar e de me fazer mais saboroso socialmente, haverá escapatória desses dois radicalismos. Se não há outra trajetória que não sancione exatamente uma vida muito temperada ou insossa.
EXPLICAÇÃO DA ESCUTA
Ninguém me chama
Escuto o calcanhar do pássaro
Sobre a flor
Os céus calam-se. O questionamento é muito terreno, claro. Deus haverá de concordar comigo que até as últimas consequências eu defenderei esta terra do jeito que ela é, afinal. Deus sabe que minhas insatisfações se configuram até a página dois; ou melhor, que eu vou com elas debaixo do braço até a próxima esquina. Depois, esqueço tudo, quando um som novo abre os meus ouvidos ou quando uma cor que desconhecia invade as minhas retinas. É Deus brincando comigo, dizendo-me para eu não estar em modo de ataque sempre; é troça mesmo. O ponto de cegueira está justamente na concepção um tanto quanto mártir de que a forma como este fruto e como os demais frutos foram concebidos é inexorável diante de Deus. O Senhor não mudará a minha natureza por um mero capricho de sua criatura; nem para o bem, nem para o mal. Quanto aos outros então, oxalá! Chego, neste momento, a duvidar se realmente o que eu identifico em mim e no mundo pode ser realmente chamado de "arrogância".
Talvez seja uma ideia equivocada, motivada pelas ginásticas daquilo que leio, também irmão de meu espírito, tão temperamental e insatisfeito quanto ao que conhecemos. Nesse quesito, Deus prega-me uma peça: pela impossibilidade de conhecer o desconhecido, prova-me ao oferecer o pensamento especulativo sobre isso. Dá-me como bosque a tarefa da especulação e a aventura da imaginação. Dois enormes arbustos que se interpõem entre mim e a vida. A vida, para Deus, é muito perigosa e, provavelmente, é arriscado vivê-la de uma só vez. Eu, meu Deus, sou um potencial incendiário. Quero criar, tudo de novo; quero criar tudo de novo. Mais uma vez. A página sempre será branca.
Por isso temos os tempos e os sonhos. Doses homeopáticas dessa fortuna. Quando não sei mais do tempo, quanto tempo tem ou quanto tempo falta; quando não me acomete o sonho, quando o sonho foge de mim por uma queda brusca da fé, este fruto tão estranho vai diretamente para a Máquina, onde o meu ser, a minha constituição e a minha ideia de Deus são esmagados até não sobrar entusiasmo. Foi assim ontem, é assim hoje e continuará a ser amanhã. De modo que minhas preocupações são peripécias que vão além das minhas vontades e, principalmente, da minha fé. Elas surgem quando Deus quer. E sinalizam que há muita polpa por fazer, muito sumo para oferecer e muita semente para lançar.
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