Distração

 


Mania cabalística. A angústia do conhecimento. Será sempre este o problema... O conhecimento, mas também o mistério de existir. Deus deu-me o dom de pensar à respeito disso. O dom significa aqui o interesse. Sou um homem interessado na arquitetura do mundo e dos que nele existem. René Descartes, com o seu cogito ergo sum, parece que salvou Deus dos entusiasmados esclarecidos. Essa espécie de gente vê o mundo como curiosidade.  Também não me atrai o outro lado. O século XX vulgarizou tudo. Nele, reside uma culpa. Estou, então, como um lenho perdido, como dizem os versos de Luís de Camões. Esta figura já populou o meu pensamento, quando estava escrevendo algo. Algo sincero, algo verdadeiro, porque vazado de intenções.

Aos vinte e oito anos escrevi apenas duas obras: a dissertação Caeiro-ângulos-Homero (2019) e o livro de poemas Minotauro (2019). Em ambos, comprei o ticket de viagem. À sério. Com muita dor na mente. Peguei-me nas mãos de Deus, mas também pedi ajuda aos deuses e às musas. Fui desbravando a sensibilidade da minha mente. Não houve sanções. Nesse momento, para além dos pragmatismos nossos de cada dia, pergunto-me se terá valido à pena. Não são esses trabalhos que vão me definir exatamente agora. Com eles, ficou outro ser cujo vínculo comigo, agora, espiritualiza apenas alguma sinceridade. O trajeto que os trabalhos desenham, que só pode ser testemunhado a partir de suas leituras, dão a lugar algum. Será que escrevi por distração?

De repente, anoitece e eu enxergo a resistência da luz sobre todas as casas. São 11h da manhã e anoitece. A casa precisa estar iluminada para evitar a cegueira, mas, eu confesso, é tarde de demais. Deus sabe disso. Deus sabe de tantas coisas. Deus é a fonte de conhecimento. E Deus deve estar cansado. E por isso, ele dá-me um pouco da sua exaustão. Às vezes, quando não sou atravessado pela luz de Deus, fabrico minha própria luz e digo-me "Deus"; uma desleal blasfêmia. Sou cauteloso: a ideia de ser Deus fez os homens mortificarem-se uns aos outros. Entre Deus e os homens, sei o meu lugar. Os homens que estão aí fora, meu Deus, eles também estão cansados. Eu não preciso vê-los, não preciso ouvi-los, não preciso sequer conhecê-los, participar da intimidade das suas vidas, pois a simpatia que eu tenho por eles cresce dentro de mim. E, em breve, devo-me juntar a eles. Devo carregar os fardos. Devo ser um ninguém.

A cidade permite que sejamos ninguém. Elogio ou ultraje? Ambos. Se ser ninguém é condição para que sejamos alguém, há um imperativo em ser ninguém que torna o ninguém algo próximo do perene. É necessário que eu sofra para que eu deixe de sofrer. Deixar de sofrer só ganha sua majestade a partir do sofrimento. O mundo acredita nessa ladainha negativa. Nela, está a base de toda a domesticação. Domestico-me pelo castigado. Sou castigado: nós somos castigados. Deus nos acompanha. E o castigo se torna autocentrado. Há castigo porque, segundo dizem, é necessário castigar. Mas Ele não é o senhor de todas as vontades? Do sim e do não? O acaso não deveria ser uma bolinha sem direção nesta galáxia? A letra, dentro de mim, machuca-me, mas sai, conquistando o espaço. Levanta do chão uma porção de identidades encharcadas de tropos. Esse horizonte branco que, sem nada dentro, é assustador, eu não nego. Deus sai de dentro de mim para habitar outro interior. Como uma criança, Ele está esperando que eu também pegue-lhe nas mãos. Que eu concorde com os Seus anseios. Que eu tome - por um instante - a grande responsabilidade.

Iria começar esse texto com a palavra responsabilidade. Iria dizer: "Há uma responsabilidade no mundo, acompanhada por máximas distrações". Ainda que eu não esteja atento, estou, no entanto, tomando conta de mim mesmo, o que quer dizer também: estou tomando conta de todos nós ou da parcela de você que está imbricada no meu ser. Curioso é que eu não posso dizer isso a ninguém, a não ser a mim mesmo. Daí vem também aquela afirmação em negativo: não dizer lança uma faísca ao querer dizer e ao dizer de fato, mas sua atração carrega um nevoeiro. Dizer a esmo também é não dizer, é gritar, vencer o inexistente. Qual é então a grande responsabilidade? Distrair-se? Se me distraio, estou longe de mim mesmo ou estou longe de Deus? Estou longe dos homens? 

Não tenho certeza. Faço-me perguntas para friccionar algum alento. A responsabilidade é ver Deus, mas não tenho certeza se em mim ou nos homens. Deus prescinde do tempo e eu sou, como todos os homens, sujeito às festividades do presente, que, por sua vez, é noivo, ao mesmo tempo, do passado e do futuro. Minha responsabilidade talvez não seja a de todos. No passado, não se imagina; no futuro, desobriga-se; no presente, ela apenas dá os braços, mas sua face está na enseada. Tão desencantada, não quer estar ali. A minha responsabilidade é conhecimento. A gentileza de Deus seria salvar-me disso. E dar-me o erro como ex-libris.

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