Saldo
Hora feliz... A do silêncio. Com os olhos abertos e, contudo, sem enxergar nada. Não confio nos sentidos. Confio no meu interior. Nele, há Deus. Mas não há como saber. Digo e crio. Digo criando. Conjugando-O e me conjurando. Estou sem informações sobre o mundo e, entretanto, escrevo. Estou quase entregando tudo. Mas estou aqui. Estou quase no calafrio da piedade. Mas estou aqui. Estou quase aos pés dele, o meu Senhor, a pedir que me dê outra vida. E estou aqui. Sou certamente um mal-agradecido. Para onde vou com tanta prepotência? Não há meios de me resignar? Vejo o outro com tão pouco e, entretanto, engole-me um monstro, engole-me um desejo. Ele se denomina a própria materialidade. Estou com frio. Eu estou aqui.
Não enxergo absolutamente ninguém. Não dirijo mais o meu olhar. Estou perdendo os sentidos. O paladar vai-se embora. Não sinto falta do aroma. E tocar-me tem sido um desafio. Não conheço mais meu corpo. Não quero saber de outra coisa a não ser do meu espírito. Não pertenço a essa cultura e entretanto responsabilizo-me por ela. Vou à rua de quando em vez e não posso me demorar pois começo a passar mal. Desaprendi. Ofuscação do campo de referência. Quero dizer mas só ressoo balbucios. Estou à beira dos grunhidos, de uma fala mal articulada. Deus quer que eu regresse a um estágio primário. Deus me ensina tomar tudo como a primeira vez. Deus desfolha-me. Assim quero crer. E entretanto, quanta dor há e haverá de ser orquestrada. Estou aqui.
E penso, livrescamente, em Rimbaud e penso nas minhas brochuras. Um livro a mais certamente corresponde a um amigo a menos. Quando acordo, parece-me que apagaram a parte dos nomes e dos topônimos. Estou a ver navios. Não sei como ir nem como voltar. A muito custo também vou pedir auxílio. Deus quer que me vire. Deixa-me perambular. Mas tenho medo de coisas invisíveis, tenho medo da covardia do outro. E a covardia do outro insinua a fraqueza e eu estou aí para testemunhar. Basta ver-me novamente, sem que eu dê por isso. E vou, objeto-delirante, sem um pio, subir as minhas escadas e esperar delicadamente o que Deus demanda de mim. O meu saldo é mínimo. Eu estou aqui?
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